sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Bestiário Breve!


No profundo vazio da noite um ser…

Quando o dia se vai. Quando os raios do sol que iluminam a cidade se escondem. Ele sai de seu esconderijo. O ser solitário das noites sombrias toma conta da rua. E lenda e inverdade verídica sobre a fama deste cavalheiro obscuro se espalha pela cidade.

“Olha, o bem da verdade mesmo, é que eu nunca vi; e ainda acho que ninguém tenha visto o tal perambulando por ai. Vê eu nunca vi, mas eu já senti, vish! E como ein; eu penso que eu tenho essa coisa de sentir muito mais do que ver.”

Foi noticia por toda a cidade. Nas bancas de jornais as manchetes anunciavam: “Caça aos Maraorlantes”. As prefeituras das cidades se comprometiam a acabar com as infestações desses seres notoriamente desconhecidos, que perturbavam e assustavam os moradores das regiões de avistamento desses seres.

“Eu nunca vi não. O seu Milton ali da esquina, diz, vê quase que todo dia. Ele até disse que parece uma coisa assim meio macaco, só que preto, e mais desengonçado.”

“Ah! Já vi sim! Vejo muitos viu, todos os dias vamos fechar as lojas vejo as pestes sair das valas  dos bueros, eles vai come e puft volta pros bueros. Eu vendo as coisas  de noite assim, e lembrando que as minhas miopias não ajuda muito, vejo e digo que as pestes parece uns ratos, umas coisas velhas com rabos, orelhinhas pequenas, e eca! Pelos, pelos nojentos.”

“Menino, mas tá todo mundo falando do bicho agora ein! Deixa o bicho minha gente, que o bicho é da natureza, se é da natureza, é Deus, se é Deus o homem não pode sair matando assim não. Além disso o bichinho é uma graça. Eu vi uma vez só, um deles, que eu acho que era a mãe inclusive, estava bem ali na esquina perto do poste comendo. Ele é bem esquisito é verdade, parece um ornitorrinco. Não que eu tenha visto muitos ornitorrincos na minha vida; mas eu vi uma vez naquele canal descoveris Chanel, e eu posso dizer que é bem parecido”

Diante de tantos relatos discrepantes a cerca da identidade do tal animal, a prefeitura sugeriu que o nome do senhor bicho desconhecido fosse algo como: Maraorlante. Ou seja, uma grande mistura de hipóteses relacionadas à semelhança do tal animal.

Este é o Maraorlante, um ser solitário que todos viram, mas que ninguém sabe bem quem é ou de onde veio. Enquanto toma as manchetes dos jornais, e o imaginário popular, Maraorlante, este ser curiosamente sombrio vive no esgoto da cidade. E se esconde para não se tornar mais uma lenda por entre os becos da cidade.

Acasos foram mudando-o de seu habitat. E por mais acasos ainda eles pararam na grande cidade escura. Este notável espécime sabe muito bem, aliás, como nem outro sabe, a arte de se esconder. Logo foram parar no submundo da metrópole, passando a viver nos bueiros. Bueiros de córregos sujos. Onde escorre todo o resto da desumana porcaria humana. Onde termina toda a podridão que podre se disfarça, que sobra da civilização, que se esconde na dita superfície homo sapiens. E é do asfalto que vem o alimento desta exuberância bestial. Acostumado a mais nobre das dietas da floresta, alimentava-se ele de luz, da luz das estrelas, afinal ele um ser da noite, e ao contrário das suas companheiras do reino vegetal que se alimentam da luz do sol, ele se alimenta de luz, porém da luz das estrelas que emana a energia de seres a milênios mortos, e que transferem através de luz seus sinais de vida morta, sinais que atravessam o cosmo a magnifica velocidade inalcançável para enfim adentrar o sistema solar, alcançando o faminto Maraorlante; que lambe os beiços e incha a pança com os sabores do Cruzeiro do Sul, das Três Marias, e enfim das infindas constelações pedaços de carne-luz espalhadas pelo céu. Na cidade este faminto ser já não tinha mais sua fonte de alimento, seus olhos famintos procuraram por dias luz, procuraram por dias estrelas, luz escassa, alimento escasso; e ainda se assustaram ao ver a fartura do alimento que parecia vir de poucos metros de distância, era um banquete, era de encher os olhos, era falso, não era, na verdade, a luz que lhe enchia a boca d’água. Do pouco que lhe sobrava dos céus das tripas coração. Era momento de pouco fartura. Na angustiosa luta pela sobrevivência este faminto animal encontrou uma fonte menos escassa de alimentação. Ele tirou suas proteínas das sobras de luz, a sombra dos transeuntes que iam e vinham ora em pé, ora se equilibrando para se manter em pé.
 
E de tanto se alimentar, e de tanto se absorver Maraorlante se lançou sem fim a profunda realidade de ser esquecido, alimentado pelo que sobra da alma humana, ele passou a viver à sombra da sombra de uma superfície humana e perversa.





No profundo silêncio

do ser [a solitária
sozinho
ele
sobe para
 sobras do vazio
da sombra do ser 

humano [ sobra
se alimenta
as estrelas
estas já não
alimentam [de seres
mais
mas há 

alimento [ de sombra

nas sobras vazias
dos transeuntes
sozinhos



Este Bestiário foi produzido como atividade prática, o objetivo era escrever uma prosa tendo como tema um bestiário, para a partir dela produzir um poema. A atividade foi para a "Oficina de Criação Poética - COMO CRIAR INUTENSÍLIOS SEM SE TORNAR UM INÚTIL" Por Edson Cruz, na Casa das Rosas. 

Estas imagens fazem parte do Bestiário criado pelo italiano Francesco Sambo.